O campeão e a final
Não creio que se pudesse esperar um campeão mais indiscutível, sobretudo se considerarmos o equilíbrio de forças que inicialmente perspectivava entre os favoritos. Arrisco, aliás, que a sensação de superioridade germânica na prova se venha a acentuar, à medida que o tempo vá colocando este Mundial na prateleira que a memória lhe terá destinado. A Alemanha já partiu entre o pelotão dos favoritos, quase unanimemente restringido a 4 selecções, e se uma caiu precoce e inesperadamente (Espanha), as outras duas foram combinando o seu trajecto com uma mediocridade exibicional indisfarçável (Brasil e Argentina). Entre os que corriam por fora, houve surpresas agradáveis, sem dúvida, mas a essas faltou-lhes sempre o potencial individual das principais forças, o que faz da Alemanha a única equipa que verdadeiramente combinou um elenco individual de topo com uma ideia de jogo bem conseguida.
Ainda assim, note-se, a final poderia ter perfeitamente conhecido outro desfecho. Porque, e como venho escrevendo desde o início, um Mundial é apenas para ver quem ganha, e não necessariamente para distinguir a melhor equipa. E a Argentina teve boas condições para ser chamar a si a vitória, mesmo sem ter sido no cômputo geral da prova, a melhor equipa. Há um ponto que me parece interessante analisar na final, e que tem a ver com o contraste entre as exibições de Brasil e Argentina. É claro que um jogo é apenas um conjunto singular de acontecimentos e por isso muito pouco conclusivo, mas há uma distinção essencial na abordagem táctica de brasileiros e argentinos, que me parece marcar toda a diferença. Ambas enfatizaram a exploração do momento de transição, mas enquanto a Argentina, e de forma absolutamente previsível (aliás, já tinha antecipado o mesmo cenário para a meia final frente à Holanda, que se confirmou), privilegiou sempre a protecção dos espaços essenciais, não tendo relutância em baixar muito bloco, o Brasil, e de forma para mim mais surpreendente, partiu para uma postura muito mais ambiciosa na sua presença pressionante. Ora, como não há ambição sem risco, a falta de qualidade do comportamento posicional brasileiro determinou esta se transformasse em mero aventureirismo táctico, com os custos que todos presenciamos. Várias vezes escrevo sobre a importância do ajuste estratégico à realidade e potencial das equipas, e aqui temos um bom exemplo disso mesmo, porque não creio que Sabella, tal como Scolari, fosse capaz de trabalhar com grande qualidade uma abordagem táctica mais arrojada, mas ao contrário do seu homólogo brasileiro, o ‘Pachorra’ foi humilde perante as suas limitações, escolheu uma estratégia realista e arriscou-se a vencer um adversário que lhe era muito superior em termos de dinâmica colectiva.
O melhor Mundial, para uns, o pior, para outros
No que respeita à opinião sobre o torneio em geral, tenho assistido a uma curiosa radicalização das opiniões sobre este Mundial. Alguns – a maioria – tendem a salientar a vertente emocional, os golos, as surpresas, e até a riqueza cultural que a prova nos ofereceu, para a classificar como uma das melhores de sempre. Outros, mais centrados nos detalhes tácticos e na realidade do futebol europeu de clubes, parecem-se sentir-se defraudados pelo sucesso pontual de abordagens tácticas, totalmente anacrónicas segundo esta perspectiva, sendo que as condições climáticas são aqui entendidas como inapropriadas para a prática do futebol. Quanto aos primeiros, não posso rebater argumentos sustentados pela emoção, já que não me cabe contestar a forma como cada um sente o jogo. Já no que respeita ao segundo caso, e por motivos que já expliquei noutras ocasiões, sou mais critico. Ou seja, é verdade que neste Mundial vimos selecções a ter sucesso com abordagens tácticas completamente ultrapassadas no futebol europeu, e outras a sentir muitas dificuldades em impor as suas ideias de jogo, apesar de estas nos parecerem bem mais evoluídas do que as dos seus adversários. Estou de acordo também que as condições em que se jogaram alguns jogos podem ter um alcance explicativo assinalável, relativamente a alguns fenómenos estranhos que observamos nesta prova. O meu ponto de discórdia, porém, reside no pressuposto de que não estavam reunidas as condições para se jogar futebol. O futebol é um jogo global, não pertence apenas à meia-estação europeia, e por esse mundo fora há várias equipas que jogam nas condições encontradas em certos estádios deste Mundial. Pessoalmente, este Mundial fez-me perceber melhor o porquê da diversidade táctica que vamos observando de continente para continente, ou de país para país, fazendo eu uma associação forte entre o sucesso dos sistemas tácticos com mais protecção posicional dos espaços vitais e menos exigência física, ao nível do pressing (nomeadamente, aqui, o caso dos sistemas com 5 defesas). Nesse aspecto, este Mundial não poderia ter sido mais enriquecedor. Quanto ao resto, à emoção, cada um a sentirá à sua maneira…
As surpresas, as desilusões e as influências para o futuro
Começando pelas melhores equipas deste Mundial (em termos relativos, claro) destacaria 5 casos, e por esta ordem: Costa Rica, Holanda, França, México e Argélia. A Costa Rica porque se conseguiu apurar com todo o mérito num grupo muito difícil e ainda ser apenas eliminada nos penáltis0. A grande nota de destaque, e para surpresa minha em face do que foram os jogos de preparação, vai para o comportamento da sua linha defensiva, terrivelmente eficaz no condicionamento através do fora de jogo. A Holanda, porque conseguiu retirar grande eficácia de uma estratégia inesperada. No entanto, não tenho dúvidas, com um pouco menos de sorte, e Van Gaal teria sido dos treinadores mais penalizados mediaticamente, neste Mundial, já que foi em sentido inverso daquela que é hoje a filosofia convencionalmente defendida por quem faz opinião. A França, porque parece-me ter sido a principal boa notícia entre os mais fortes, tendo sido a selecção que mais perspectivas deixou de se aproximar do potencial dos 4 favoritos. Aliás, sendo honesto, creio que apresentou mais argumentos do que Argentina, Holanda ou Brasil, mas quis a sorte que se cruzasse primeiro com a Alemanha. O México, porque apresentou grande qualidade dentro da sua proposta de jogo, apurando-se num grupo onde não era favorito e apenas sucumbiu perante o desespero final holandês. Finalmente, a Argélia, que embora tenha tido alguma felicidade num grupo acessível (pode agradecer ao guarda redes russo!), superou largamente as expectativas e ainda fez um bom jogo frente à Alemanha, forçando os futuros campeões mundiais a um inesperado prolongamento.
Referência para os casos de equipas muito valorizadas, mas a meu ver algo excessivamente. A Colômbia, porque se limitou a vencer um grupo e uma eliminatória onde era favorita, tendo contado ainda com uma eficácia desproporcionadamente elevada das ocasiões de golo criadas. Os Estados Unidos, porque foram a meu ver a equipa com mais felicidade nesta prova, começando pelo triunfo frente ao Gana, passando pelo benefício que retiraram da goleada sofrida por Portugal, e terminando no incrível desperdício belga nos oitavos de final, que normalmente teria terminado num resultado muito desnivelado. Finalmente, a Nigéria, porque se apurou num grupo onde a Bósnia e até o Irão mostraram mais qualidade colectiva.
Do lado das desilusões, a maior de todas será a Espanha, claro. Depois, os casos de Itália, Portugal e Bósnia, que com os espanhóis me pareceram as equipas que mais sentiram as condições climatéricas, crendo eu que teriam outras hipóteses se tivessem jogado debaixo de outras condições. Noutro plano, colocaria selecções como a Croácia, Bélgica, Brasil e Argentina, que mesmo em alguns casos com trajectórias de aparente sucesso, me parecem ter feito muito menos do que aquilo que o seu potencial técnico lhes permitia, muito devido a modelos tácticos que na minha leitura tiravam muito pouco partido do seu potencial individual.
Falar, finalmente, das influências que este Mundial poderá ter, em particular relativamente à vertente táctica. Aqui, separaria dois casos, o do futebol europeu e o do Brasil. Na Europa, é possível que venhamos a ter algumas experiências com sistemas de 3 centrais, mas não creio que venham a conhecer grande sucesso, já que me parece que no futebol europeu o contexto não é especialmente favorável, e que o sucesso desta opção no Mundial tem muito a ver com o contexto. No Brasil, há a esperança que o choque dos 1-7 possa vir a mudar qualquer coisa. Só o tempo trará essa resposta, mas no caso de um gigante como é o futebol brasileiro, qualquer pequena melhoria pode ter efeitos tremendamente positivos. Como último ponto, referenciar o mistério que é para mim a opção de Van Gaal por uma marcação muito individualizada. Não sou capaz de perceber os motivos, mas como não parto do princípio (absurdo) de que saberei menos do que o experimentado treinador holandês, gostaria que lhe perguntassem o seu raciocínio. Ainda por cima, e goste-se ou não da ideia, o facto é que teve sucesso!