9.7.14

A caminho do Maracanã #19 (Sobre o 1-7!)

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Arrisco afirmar que esta partida tem tudo para se tornar no jogo mais célebre da história dos campeonatos do mundo. Na minha opinião, um jogo com estas características, sobretudo a celeridade com que o vencedor ficou definido, acaba por ter menos interesse do ponto de vista da análise, já que grande parte dos 90 minutos são disputados num contexto competitivo singular e dificilmente replicável. Por outro lado, o resultado adquire um simbolismo tal, que nos arrasta intuitivamente outras discussões, de âmbito mais lato. Como o momento actual do futebol dos dois países, no caso as duas maiores potências históricas do futebol mundial. Assim, aproveito este jogo e este resultado para dar também a minha opinião, breve, sobre esses temas, começando naturalmente por algumas notas sobre o jogo, propriamente dito.

O jogo: surpresas, para além do resultado
Começo por deixar claro que não retiro grandes conclusões a partir deste jogo, e que não me revejo nesse tipo de leitura. Um jogo tem sempre uma história própria e grande parte do que nele acontece é específico e único. Ou seja, os números da derrocada brasileira são, não tenho dúvidas, situacionais e quase impossíveis de vermos repetidos no futuro, seja qual for o destino destas duas selecções. Daí, precisamente, o carácter histórico do resultado a que assistimos. No mesmo sentido, os problemas do Brasil e as virtudes da Alemanha não decorrem do que se passou neste jogo. O Brasil, e conforme venho escrevendo, apresenta problemas claros do ponto de vista da sua qualidade organizacional, e não é por ter sido goleado que passa ser pior equipa do que era, nem tão pouco seria a melhor selecção do mundo caso vencesse o Mundial, como perfeitamente poderia ter acontecido. O mesmo se poderá dizer, já agora, de Holanda e Argentina, cujo destino ainda não conhecemos, mas que poderão bem sagrar-se campeãs mundiais com colectivos repletos de fragilidades facilmente identificáveis. Em sentido inverso, a qualidade da Alemanha também não é maior por este feito histórico, assim como não deixaria de ter melhores processos colectivos do que o Brasil, caso tivesse uma noite menos feliz em Belo Horizonte. Um jogo pode definir um campeão, distinguir entre vencedores e vencidos, mas não é minimamente suficiente para determinar a qualidade de uma equipa!

Relativamente ao jogo, e situando-me mais no que aconteceu na primeira parte, confesso-me surpreendido por algo mais do que o resultado. É que se esperava uma Alemanha a assumir o jogo mais em organização, e um Brasil com maior foco no que poderia conseguir após a recuperação da bola. Em boa verdade, porém, tivemos mais o cenário inverso, se atentarmos com rigor às incidências do primeiro tempo. A Alemanha, e perante o pressing alto brasileiro, optou por construir várias vezes de forma longa, aproveitando a vantagem de estatura de Muller face a Marcelo e a extensão do bloco brasileiro para poder ganhar vantagem na conquista pela segunda bola, nas costas do duplo-pivot canarinho. O Brasil, por seu lado, foi quem teve mais vezes a iniciativa de jogo a partir de trás, verificando-se facilmente a estratégia de solicitar, de forma larga, o extremo do lado oposto - o que explica claramente a aposta em Bernard, em detrimento de uma opção mais interior. Na minha leitura, porém, onde os germânicos retiraram mais vantagem estratégica no jogo foi na liberdade defensiva dada aos extremos, Muller e Ozil, no sentido de aproveitar as costas dos laterais, após a recuperação da bola. Como a partida acabou por ter muitos duelos na zona média, a Alemanha ganhou claramente vantagem com esta opção, porque conseguiu sucessivamente ultrapassar a reacção à perda do Brasil, muito ineficaz apesar da agressividade dos seus jogadores. Mas, se estas opções estratégicas de Low surtiram efeito e contribuíram para a afirmação da sua equipa no jogo, elas estão muito longe de explicar a goleada a que assistimos. Para tal, temos de recorrer, em primeiro lugar e de forma clara, à eficácia. Porque assistimos a jogos neste Mundial onde equipas conseguiram um número de ocasiões até superiores ao da Alemanha e acabaram o jogo com o credo na boca (estou a lembrar-me, por exemplo, do Estados Unidos - Bélgica). Depois, a uma série de comportamentos individuais muito pouco conseguidos por parte dos jogadores brasileiros nos lances chave. Restringindo-me apenas à primeira parte, destacaria: Fernandinho e Marcelo, no segundo golo; A perda de Fernandinho, no quarto golo; David Luiz, no quinto golo. Finalmente (e porque nem a eficácia nem os erros individuais costumam marcar tanta diferença a este nível), então, destacaria o carácter explicativo dos problemas crónicos da organização brasileira, muito bem potenciados pela algo surpreendente abordagem estratégica de Low, cujos pontos principais descrevi acima. Aqui, o foco vai para a pobreza da dinâmica colectiva de apoio à saída de bola, e para a extensão do bloco brasileiro, querendo definir um inicio de pressão, a meu ver, demasiado alto para uma linha defensiva tão relutante em subir posicionalmente no terreno, o que isolava de forma gritante os dois médios. Debilidades amplamente conhecidas e identificáveis antes do jogo, que contribuíram para o cocktail explosivo que desfez o 'escrete', sem dúvida, mas que estão muito longe de o poder explicar como um todo.

Brasil e o problema da qualidade táctica
Em qualquer discussão sobre o futebol brasileiro, sobretudo se esta for feita a partir de quem o olha da outra margem do Atlântico, o mais provável é que se acabe por sublinhar o contraste entre a riqueza de recursos individuais e as debilidades tácticas. Neste sentido, a selecção brasileira não podia ser um melhor reflexo do futebol do seu país. A meu ver, o problema da qualidade táctica do futebol brasileiro deriva de dois pontos fundamentais. O primeiro tem a ver com a forma paradoxal como são vistos os treinadores, que por um lado são a primeira explicação para tudo o que acontece, mas que por outro não vêem o seu trabalho ser devidamente valorizado nas decisões e planeamento da gestão desportiva. Está longe de ser uma exclusividade brasileira, bem o sabemos, mas naquele cenário este é um fenómeno especialmente exacerbado, chegando por vezes a parecer que os treinadores são meros amuletos da sorte, tal a facilidade com que se trocam uns por outros, na esperança de finalmente acertar naquele que vai trazer o milagre do sucesso. O outro ponto é o facto de ser um futebol muito virado para dentro e com uma receptividade reduzida (para não dizer nula) para treinadores e ideias vindas de fora. Este também não é um mal exclusivo do Brasil e é até bastante mais comum do que possa parecer. Na Europa, por exemplo, destacaria os casos de França e Holanda, que na minha óptica têm perdido muito por algum autismo do seu futebol.

Até aqui, parece-me que o tema é relativamente pacífico e dúvido que muitos discordem da leitura que deixei acima. Menos unânime, calculo, deve ser a minha forma de ver a solução para este problema. Particularmente, não concordo que o que o futebol brasileiro precisa é de uma mera importação das melhores ideias do futebol europeu. Ganharia com essa abertura, sem dúvida, e provavelmente seria mesmo esse o primeiro passo a ser dado, mas a ideia de um recolonização do Brasil, agora de natureza futebolística, parece-me um potencial equívoco. Se há coisa que este Mundial mostrou aos europeus é que as suas ideias, para serem idealmente implementadas, pressupõem um determinado contexto, facilmente desencontrado fora das fronteiras do velho continente. Refiro-me às condições climatéricas, claro! O futebol brasileiro precisa de se abrir a novas e melhores ideias, indiscutivelmente, mas precisará de fazer também a sua própria evolução, de acordo com a sua própria realidade. E nesta diversidade específica reside mais uma das riquezas do futebol. Já agora, da mesma forma que os europeus duvidarão que os brasileiros tenham aprendido alguma coisa com a lição dos 1-7, eu também tenho dúvidas que na Europa se tenha aprendido grande coisa com o que se passou em vários jogos deste Mundial.

Alemanha, a palavra é formação, não Guardiola!
Já fiz alusão a isto em textos recentes, mas parece-me que mais uma vez se está a ceder à tentação de confundir correlação com causalidade, no futebol. Vimos a Espanha dominar as grandes competições nos últimos 6 anos, e vemos agora a Alemanha a impressionar o Mundo, na copa brasileira. Ponto comum aparente: Guardiola. Não digo que o fantástico treinador catalão não tenha influência em tudo isto. Se é ele quem treina durante o ano boa parte dos jogadores que depois evoluem numa competição de curta duração, naturalmente que a sua importância não pode ser desprezada. No caso da Alemanha, evidenciaria os casos de Neuer, Lahm e Muller. Neuer, com muito mais qualidade para ser uma espécie de líbero e complemento importante para a ideia de jogo da selecção. Lahm, que nunca seria solução interior caso não se tivesse cruzado com Guardiola. Muller, que passa a poder ser também uma solução como falso 9, oferecendo à equipa uma maior vocação para explorar o jogo interior e o espaço entrelinhas. Mas, a Alemanha já vem impressionando pela qualidade do seu futebol há vários anos a esta parte, vivendo na sombra de uma equipa espanhola que se revelou sempre mais forte nos duelos directos com os germânicos. Da mesma forma, também a Espanha já havia imposto o seu estilo ainda antes de Guardiola ter chegado ao comando técnico do Barcelona, ainda que seja também inegável a sua influência positiva nas versões da Roja em 2010 e 2012.

Assim, o verdadeiro ponto em comum entre Espanha e Alemanha está, sim, na formação. E, aqui, mais do que os resultados ao nível dos escalões mais jovens (onde a Espanha vem sendo demolidora), talvez seja mais importante abordar a forma como as novas gerações são integradas nas principais ligas dos respectivos países, sendo que no caso alemão todos os anos surgem novos valores a ter oportunidade de iniciar o seu trajecto nas principais equipas da Bundesliga. Claro que esta é apenas uma visão simplista e que haverá sempre uma dependência importante da qualidade das novas gerações. Seja como for, e mesmo havendo outros factores importantes a ter em conta, parece-me claro que é na geração e desenvolvimento de talento que reside o grande impulsionador da equação de sucesso destas duas selecções.

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